Afirmar que o texto dramatúrgico deve ser entendido como uma obra em processo, isto é, inacabado ou não-absoluto, levanta importantes questões epistemológicas, que necessitam de uma maior sistematização por parte daqueles que se interessam pelas condições de recepção da obra.
Entre outras coisas, esta mudança de olhar sobre o objeto propõe, como perspectiva metodológica, abandonar o paradigma do texto enquanto obra fechada para em seguida criar um outro, isto é, do texto enquanto obra aberta.
Umberto Eco em seu livro Obra Aberta (1962) debate exaustivamente e calorosamente o tema da pluralidade de significados de uma obra de arte. A ambiguidade de significados torna-se a principal característica para uma obra ser reconhecida como arte.
Esta afirmação, de tom revolucionário, possui seu lugar na história da arte e da cultura ocidental. O projeto de Eco vinha de encontro à questionamentos e desejos de uma época de grande efervescência cultural, artística e ideológica.
A vanguarda pedia passagem a todos os setores da sociedade, social-político-cultural-artístico , qualquer limite era considerado uma forma de opressão à criatividade do artista.
A liberdade de interpretação sobre as obras era celebrada com grande entusiasmo por Eco. Mas, será o próprio autor de Obra Aberta que irá rever esta posição algumas décadas mais tarde em um outro livro intitulado Os Limites da Interpretação de 1999 (um título tanto ou mais revolucionário que o outro), provocando assim uma nova discussão tanto no campo da estética como no da crítica.
A tese principal do livro de Eco é a seguinte:
“Dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz. [...], o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes. Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto”. É a partir desta constatação de Eco que iremos refletir sobre possíveis caminhos metodológicos para se interpretar e analisar um texto dramático.
A teoria da interpretação infinita, preconizada por numerosos estudiosos da arte nos anos 60, refuta a ideia de que os enunciados, as palavras, possuem um sentido literal, ou seja, um sentido comum anterior a qualquer ato de liberdade do leitor sobre as formas lexicais.
Esta questão do “sentido literal” do texto significa, por si só, uma restrição à ideia do texto enquanto um universo aberto à espera de infinitas descobertas e de hipóteses interpretativas.
É claro que toda leitura é um ato de desconstrução e que é possível dentro de uma obra observar hipóteses de leitura contrastantes entre si, mas há certas regras gramaticais (a língua) e linguísticas (o uso da língua/ a fala) legitimadas pela nossa história cultural.
Eco nos sugere, como exercício de interpretação, certos critérios de economia que podem nos auxiliar a rejeitar certas interpretações desviantes, provocadas por um deslizamento irrefreável do sentido: “os limites da interpretação coincidem com os limites do texto”.
Há interpretações que são totalmente inaceitáveis e é o próprio texto que irá impor restrições a seus intérpretes. Como salienta ironicamente Eco, “a similitude tem nariz de cera, pois toda coisa pode ser semelhante a uma outra”.
Entendendo o texto como objeto e parâmetro de suas análises, elimina-se a idéia da interpretação como deriva, ou seja, dizer que um texto possui muitos sentidos não é dizer que nele não exista nenhum sentido ou que todos se equivalem.
É necessário descobrir um Modus, uma medida de interpretação. É necessário um sistema que permita tornar a interpretação menos arbitrária: “É impossível (ou pelo menos criticamente ilegítimo) fazer um texto dizer o que ele não diz”, sugere Eco.
O leitor, no exercício da interpretação, deve se perguntar quem escreveu o texto, para quem ele foi escrito e quando foi escrito, ou seja, para legitimar hipóteses interpretativas, devemos nos perguntar sobre “o quadro cultural no qual se insere o texto”.
O contexto cultural representa uma redução drástica da pretensão da leitura enquanto deriva. Estes critérios de economia, salienta Eco, que não tem nada a ver com uma pesquisa sobre as intenções do autor, nos obriga a dar um caráter histórico, cultural ao texto, o que necessariamente irá nos indicar percursos de leitura.
Então, quais percursos poderíamos legitimar a partir desta tese de Eco? Ou melhor dizendo, quais metodologias poderíamos utilizar para interpretar sem esbanjamento ou deslumbramento excessivo um texto dramático? Em todo texto há um conjunto de procedimentos, de instruções, de estratégias que devemos prestar atenção se quisermos jogar com o texto (e não contra ele).
Se desejarmos realmente interpretar um texto com arte, devemos ter em mente que todo texto é dono de uma estrutura indicativa de percursos que devem ser respeitados. A partir desta constatação, é possível compreender a afirmação de Eco quando ele diz que todo texto possui um leitor-modelo: “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar”.
Mesmo sabendo que um texto dramático sugere uma série de interpretações isso não quer dizer que este texto possa permitir uma leitura qualquer, definida por desejos individuais exteriores ao próprio texto. Quando Eco defende a tese de que o próprio texto nos impõe certos limites ele quer dizer que o “objetivo principal da interpretação é entender a natureza deste leitor (modelo), apesar de sua existência espectral”.
O leitor-Modelo de Eco não só é um colaborador do texto como também nasce do próprio texto. Dentro desta perspectiva, é lícito afirmar que toda estrutura textual prevê a presença de Leitores-Modelo e é a partir desta idéia que Eco irá sustentar sua tese.
A qual tipo de leitor o texto se dirige? O que o texto pede ao leitor? Que tipo de cooperação o texto espera de seus leitores? Se todo texto se dirige a um leitor-modelo, deveríamos sempre nos perguntar no ato de leitura: qual tipo de leitor que o texto quer que eu seja? quais são os procedimentos e as estratégias utilizadas pelo texto para guiar este leitor fictício?
Estas perguntas permitem não só tornar a interpretação menos aleatória, como também permite guiar a análise crítica de forma mais criteriosa e menos arbitrária, pois tentando respondê-las, o trabalho do crítico e do interprete partirá do próprio texto, isto é, da análise dos diferentes elementos, procedimentos e instruções utilizados por cada autor em função da natureza dos seus leitores-modelo.
Seguindo estes critérios de economia apontados por Eco, é possível avaliar e refutar certas críticas e leituras desviantes que insistem em utilizar o texto como um receptáculo de suas próprias paixões.
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