A transferência da Corte lusa para o Rio de Janeiro, em 1808, e a conseqüente abertura dos portos para as nações amigas, transformam a antiga cidade colonial em destino de diversas missões artísticas, diplomáticas e científicas. Entre estas destaca-se a Missão Artística Francesa [2], reunindo literatos, arquitetos, escultores, pintores de paisagem e de história, gravadores, com dupla missão civilizatória: dar fisionomia digna à nova capital do vice-Reino e nela fundar uma Academia de Belas Artes. Mas a transferência dos cortesãos portugueses e artistas franceses para o Rio parece sempre marcada pelo sinal negativo de uma realidade que desencoraja os esforços no sentido do implante da civilização.
De rígida formação neoclássica - discípulo de Jacques Louis David e pintor de história requisitado por Napoleão -, Debret encontra no Brasil a promessa de solução à sua crise pessoal e profissional (tendo perdido um filho, separado da mulher, vê-se sem alternativas profissionais após o fim do período napoleônico). Logo que aporta no Rio de Janeiro, porém, percebe a distância entre os valores éticos e estéticos de sua prática artística e a realidade da cidade colonial na qual deveria se estabelecer e ensinar as belas artes da pintura histórica.
Numa aquarela realizada no ano em que chega ao Brasil, Debret na pensão, o artista qualifica esse dilema. A ironia manifesta-se na oposição entre as figuras do pintor sentado à mesa e do escravo ao fundo, carregando uma bandeja. A presença do escravo é ambígua. Apresenta-se como ponto de convergência das linhas que formam a perspectivação do assoalho e do teto do albergue. Ao ocultar o ponto de fuga, converte a parede às suas costas num fundo mais ou menos difuso e aproxima o olhar para a cena central: o artista sentado diante da mesa. Entretanto, as funções estruturantes da figura do escravo só podem aparecer de forma dubitativa, obscurecida pela área de sombra da aquarela.
A dúvida sobre a presença do escravo ressoa na dúvida sobre o próprio trabalho do artista. Como o truque do espelho nas obras holandesas, o escravo obriga à duplicação da visão, à adoção desse outro ponto de vista, de trás, como um contraponto da nossa própria visão frontal. É como se o escravo olhasse o artista e nos olhasse vendo a figura de Debret, materializando a incongruência do discurso ético sobre o trabalho artístico numa sociedade escravocrata. Ao mesmo tempo, porém, é a sua presença que possibilita o funcionamento da perspectiva fechada do albergue.
O ceticismo com relação às possibilidades efetivas de atuação do artista nesse mundo novo surge como garantia da distância necessária ao exercício do seu trabalho. Se o impulso narrativo do viajante encontra sua realização nos dados particulares desse universo desconhecido, escapa-lhe seu fundamento e a sua consistência. A cidade colonial não é apenas inculta, o que seria mesmo um valor para o trabalho missionário dos artistas franceses. Ela é inédita; não fornece sequer a base material ou social para o exercício da missão civilizatória.
Apenas quando retorna à França e publica sua narrativa de viagem, Debret recupera para si o sentido heróico da missão:
“Animados todos por um zelo idêntico e com o entusiasmo dos sábios viajantes que já não temem mais, hoje em dia, enfrentar os azares de uma longa e ainda, muitas vezes, perigosa navegação, deixamos a França, nossa pátria comum, para ir estudar uma natureza inédita e imprimir, nesse mundo novo, as marcas profundas e úteis, espero-o, da presença de artistas franceses.”[3]
Partir da França, chegar ao mundo novo, voltar à pátria - nesse trajeto, o artista viajante encontra a sua razão de ser. Em suas aquarelas brasileiras Debret retoma o contraponto anunciado nesse pequeno trecho de seu livro entre o já - “já não mais temem” - e o ainda - “uma longa e ainda perigosa navegação”. A atualidade artística de Debret, aquilo que o torna novo no cenário cultural europeu, vê-se repentinamente velho diante do ineditismo da situação natural e social do Brasil.
Suas aquarelas nos falam da impossibilidade de passar do velho ao novo, de estabelecer uma relação de continuidade entre esses mundos diversos e, conseqüentemente, de formar uma impressão duradoura sobre essa realidade adversa. Inapreensível, resta a Debret converter a realidade brasileira em elementos particulares, em vistas parciais, em personagens anônimos e maltratados, em detalhes exóticos e insignificantes. O próprio artista, no livro Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, apresenta o seu trabalho como uma “coleção”[4], cujo fim se processa com o retorno à França e a publicação de suas memórias.
Resultado de anos de estudo numa terra longínqua, seu acolhimento favorável surge como única e frágil compensação para a tristeza de não reencontrar alguns de seus antigos mestres e colegas, dos quais “restam os trabalhos imortais para admirar, consolo glorioso mas bem melancólico, se é que há consolo para a separação eterna”.[5] Na obra do artista compromissado com o registro documental de uma realidade estranha, a atenção aos detalhes sugere, a um só tempo, o interesse pela diversidade do mundo e o empenho em homogeneizá-lo através da prática civilizatória.
Debret esforça-se, nos anos em que permanece no Brasil, para registrar os costumes antigos, rapidamente modificados pelo contato vaidoso com o cosmopolistismo dos cortesãos europeus. A sua longa estada permite-lhe presenciar a modificação nas vestimentas, nos calçados, nos hábitos cotidianos, nas construções, e até na situação política, com a passagem da Colônia para o Império independente em 1822. Justamente neste ano Debret escreve a seu irmão François sobre a deliberação de publicar suas memórias de viagem após retornar à Europa.
Nas primeiras aquarelas em registra a cidade do Rio, geralmente de escala miniaturizada, a ênfase descritiva recai nos detalhes da casa, do quarto e do ateliê em que o artista se instala. Enviadas a seu irmão, essas imagens apresentam sobretudo o novo cotidiano do francês nos trópicos. A partir de 1822, porém, passa a compor cenas completas, além de realizar centenas de estudos que servirão mais tarde para a elaboração das litografias de seu álbum de viagem. Agora, é preciso se valer da memória para reconstituir hábitos perdidos ou em desuso. Nas famosas representações do Jantar brasileiro, do Interior de uma habitação de ciganos ou dos inúmeros vendedores ambulantes, há mais do que o espanto com a velocidade com que os habitantes da cidade esmeravam-se em adotar costumes e formas européias. Há o manifesto desejo de ordenação narrativa dessas imagens mnemônicas.
A rememoração, contudo, não serve apenas para o revival do passado brasileiro. Serve para aproximá-lo novamente da França, dar novo sentido à sua prática civilizatória. Pois a mesma cidade que adere sem pudor às novas modas resiste ao civismo, mostra-se refratária à própria urbanidade. Incapaz de civilizar sua gente, Debret assume não apenas a tarefa documentarista do viajante, como a sua temporalidade específica: a viagem é uma espécie de hiato de tempo, um intervalo entre a partida e o retorno, preenchido com o trabalho da coleta e registro de dados.
A aquarela de 1827, Um cientista em seu gabinete, reflete sobre essa questão. Livros, globo, pássaros empalhados, cadernos de anotações, estantes envidraçadas não são capazes de apagar a instabilidade da rede que sustenta um cientista de roupão e chinelos e das cadeiras e bancos que servem de suporte precário para o registro de seus conhecimentos. Importa notar que, nessa aquarela, aparecem muitos dos elementos característicos do Kunstkammern ou Gabinete de Curiosidades, que desde o século XVI serve de modelo não apenas para as coleções, como igualmente para a prática científica e artística.
No gabinete do cientista transparece, entretanto, uma ordem diversa da estratégia taxionômica que preside essas coleções de curiosidades do Novo Mundo. Após 10 anos de convivência com a sociedade colonial, Debret fala de uma presença física não ordenadora, de uma instabilidade que desafia a própria razão. A proximidade do fundo do quarto, a porta fechada, a luz baça que entra pela janela à esquerda materializam esse desconsolo. O cientista é a interface entre o arranjo dos objetos de seu ofício e a dispersão caótica de suas anotações pelo chão.
Diferente de outros viajantes que restam apenas meses ou poucos anos no Brasil, Debret permanece 15 anos em solo tropical. Nesse espaço de tempo, a promessa de uma vida nova transforma-se em ameaça a seus valores culturais para, depois, readquirir o caráter de promessa pela decisão de convertê-la em discurso - promessa de reconhecimento entre seus pares, consolo melancólico pelo afastamento da terra natal. Nesse movimento, precisa transformar o seu estudo em lembrança, em cálculo mnemônico do tempo passado, mas também do tempo que falta.
As imagens criadas por Debret, portanto, não são voltadas apenas para o registro de uma vida pretérita, mas também para o futuro, para o desenvolvimento da arte européia. Nesse sentido, ao estruturar suas memórias, aposta na duração como fenômeno da lembrança, daquilo que desde o início é produzido na forma do ausente, do longínquo, do desaparecido. A própria utilização da aquarela - técnica que, à época era vista como preparatória - e a aceitação mais ou menos pacífica de sua fluidez e imprecisão mostram que o artista concebia esse conjunto de obras como algo estranho em sua carreira. Estranheza que complementa a dificuldade de decifração desse Novo Mundo e requer a identificação das imagens a vestígios, fragmentos de uma existência que abandona a realidade empírica da presença para transmudar-se em lembrança da distância.
Escrever suas memórias, reunir e selecionar as aquarelas, transpô-las para a técnica da litografia, ordená-las em assuntos, implica na nova direção assumida pelo ceticismo do artista missionário. Remédio para a decepção de Debret quanto às reais possibilidades civilizatórias, essa coleção particular de imagens não é apenas o registro da vida brasileira no início do século XIX; é, sobretudo, a conformação de uma narratividade específica, capaz de fazer dos personagens, lugares e costumes brasileiros algo simultaneamente novo e velho, originário em sua requisição perene de deciframento, mas morto enquanto lembrança.
Paradoxalmente, a ausência de unidade discursiva a fundir esses fragmentos, antes de se remeter à falência dos valores classicistas de Debret, os afirma. Pois no lugar de dotar cada parte de autonomia, de forma a nos remeter ao todo - o que Wölfflin percebeu como uma das características fundamentais do estilo linear -, requisita o seu valor autônomo pela ausência de correspondência a qualquer totalidade. Talvez este tenha sido o grande legado de Debret para a arte e a cultura brasileiras: perceber que não seria possível articular numa totalidade partes velhas e novas, de tamanhos e formas diferentes, a não ser que cada uma delas fosse tomada como todo, fosse simultaneamente partida e regresso, benção e maldição.
Em um de seus estudos, Debret mostra uma negra sentada num degrau, recostada à parede. Maltrapilha, descalça, abandonada, entrega-se ao apoio do muro. Nessa aquarela não há passado, nem futuro. Tampouco há cena ou ação. Na totalidade daquele instante, a negra está parada, repousa. Há uma certa grandeza patética nesse descanso; pode-se mesmo notar resquícios de sensualidade no encontro da mulher com as pedras e o cal sempre úmido. Antes e depois existe a dor, a brutalidade de uma ordem social escravista. Ali, há a violência do abandono, a desolação, mas também o retardamento da dor, o sossego presente, única propriedade dos escravos condenados à uma existência cujas ações são sempre não livres.
É dessa cidade ausente de civismo, cuja beleza parece surgir de uma possibilidade restrita e privada, que nos fala Debret. Retirá-la desses momentos escassos, da intimidade de uma vivência particular, envolve o olhar sensível do artista tanto quanto a sua postura cética. Em suas aquarelas, a existência do belo vem da fraqueza, da distância que a lembrança apenas pode aproximar enquanto vestígio. Inexiste - como alguns estudiosos brasileiros gostariam - o encanto do viajante com a doçura do clima, com a naturalidade dos costumes, com a natureza exuberante. Há, isto sim, um renovado ceticismo: do lado objetivo, percebe apenas a possibilidade de um contato superficial do Novo Mundo com a civilização européia, manifesta no luxo das vestimentas, no brilho das ordens honoríficas que ajuda a dar forma, no interesse particular do Imperador pelo desenvolvimento das artes e das ciências; do lado subjetivo, não se deixa converter ao Novo, sustenta o estranhamento, a sensação de nunca ter realmente chegado de todo no Brasil.
Logo, embora a grande maioria das análises sobre a obra de Jean Baptiste Debret goste de enfatizar o seu caráter documental e a sua relevância para o conhecimento da vida cotidiana no Brasil do início do século XIX, parece-me, ao contrário, que esta não oferece um conjunto de dados empíricos e consignáveis. Oferece, antes, uma coleção de imagens, cuja significação não diz respeito à sua capacidade de decifrar enigmas, de esclarecer experiências, mas sim de manter o país como um enigma, algo a ser perpetuamente interrogado.
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