por Ricardo Setti, Veja
O que seria da História sem as biografias como as de Hitler, Maria Antonieta, Stalin, Gandhi, Mao e Darwin?
Num momento infeliz em que ídolos da cultura brasileira procuram reivindicar o direito de censura a biografias de pessoas públicas – o que na prática, como venho insistindo, priva os brasileiros de aspectos fundamentais de sua própria história –, julguei extremamente esclarecedor publicar o texto abaixo.
Faz pensar.
Reportagem de Tatiana Gianini, com colaboração de Tamara Fisch, publicada em edição impressa de VEJA
Detalhes nada pequenos
A compreensão do passado e do presente da humanidade deve muito à garimpagem obsessiva, pelos biógrafos, de cada momento obscuro da vida de personagens históricos
“Não me pus a escrever histórias, mas vidas somente; e as mais altas e gloriosas proezas nem sempre são aquelas que mostram melhor o vício e a virtude do homem. Ao contrário, muitas vezes uma ligeira coisa, uma palavra ou uma brincadeira põem com mais clareza em evidência o natural das pessoas.”
Assim escreveu há quase 2000 anos o grego Plutarco, autor das primeiras biografias de que se tem notícia, no capítulo de Vidas Paralelas dedicado a Alexandre, rei macedônio do século IV a.C.
A busca pelo detalhe, pelo fato aparentemente banal que ajuda a reconstruir o caráter e os gestos de pessoas reais, é o desafio dos biógrafos desde então. Para uma vertente de historiadores, em especial aqueles que beberam da água turva do marxismo, as biografias são obras menores e devem ficar fora da literatura acadêmica, porque os acontecimentos históricos são consequência apenas de processos sociais e econômicos, e não da ação de indivíduos. Essa é uma visão ultrapassada.
Uma conferência realizada em 2004 na Alemanha, que reuniu trinta historiadores de diversos países concluiu que era preciso “trazer as ‘pessoas’ de volta para a história” e que “a biografia é o gênero certo para investigar certas questões”.
Isso inclui entender como um homem comum se torna um ditador capaz das piores atrocidades ou como um artista constrói sua fama e seu lugar na história cultural de um país. “As sociedades têm o direito de saber sobre o seu passado e o seu presente, e as biografias são parte disso”, diz o inglês Jonathan Fenby, autor de O General, sobre o presidente francês Charles de Gaulle [uma das figuras mais marcantes e decisivas da história da França no século XX].
Algumas das informações mais reveladoras sobre personalidades decisivas da história são conhecidas por causa de biografias. Muitos desses fatos jamais viriam a público se dependessem da autorização dos familiares do biografado. “Eles têm uma tendência natural a apagar o que é real, doloroso ou pouco lisonjeiro. Infelizmente, essas eliminações privam a história de vida de um personagem de sua profundidade”, diz a americana Kitty Kelley, autora de biografias não autorizadas da apresentadora Oprah Winfrey, do cantor Frank Sinatra, da ex-primeira-dama Jacqueline Kennedy e da atriz Elizabeth Taylor.
Kelley é criticada por carregar nos detalhes íntimos de seus personagens, mas ela se defende dizendo que eles são necessários para se contrapor à imagem pública fabricada que as celebridades ou políticos querem perpetuar de si mesmos. Para reforçar o seu argumento de que a censura prévia é pior do que eventuais desrespeitos à privacidade, Kelley cita uma frase do presidente americano John Kennedy (1917-1963): “O grande inimigo da verdade muitas vezes não é a mentira, deliberada, artificial e desonesta, mas o mito, este sim persistente, persuasivo e irrealista”.
[Abaixo, alguns fatos relevantes revelados pelas biografias de personalidades históricas, entre muitos milhares de outros que poderiam ser apontados:]
Adolf Hitler
Adolf Hitler (1889-1945)
Biografia: Hitler, do inglês Ian Kershaw, em dois volumes, de 1998 e 2000
O que revelou: Com base nos diários do ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels, os quais o autor encontrou nos arquivos soviéticos em Moscou, ficou claro que o ditador alemão tinha controle direto dos crimes perpetrados por seu regime.
Foi Hitler, por exemplo, quem deu a ordem para retirar a polícia das ruas durante a Kristallnacht, a Noite dos Cristais, em 1938, quando as multidões atacaram impunemente judeus e destruíram suas sinagogas e lojas – o primeiro passo para o posterior Holocausto.
Maria Antonieta
Maria Antonieta (1755-1793)
Biografia: Maria Antonieta, do austríaco Stefan Zweig, de 1932
O que revelou: Autor de duas dezenas de biografias ou perfis, o escritor, que se suicidou no Brasil, em 1942, fez um aprofundado retrato psicológico da rainha francesa, muito elogiado por seu amigo Sigmund Freud, o fundador da psicanálise.
Hábil em dar vida às circunstâncias da corte em que ela estava confinada, Zweig foi o primeiro a mostrar Antonieta como uma adolescente sexualmente frustrada, ignorada pelo rei Luís XVI.
A consequente busca por outras formas de prazer e entretenimento rendeu à rainha a fama de fútil.
Josef Stalin
Josef Stalin (1878-1953)
Biografia: Stalin – A Corte do Czar Vermelho, do inglês Simon Sebag Montefiore, de 2004
O que revelou: Sempre há algo de novo a descobrir sobre Stalin, um dos personagens mais biografados da história.
Montefiore reconstruiu por meio de entrevistas com testemunhas históricas e documentos inéditos a intimidade do poder no auge do terror stalinista, quando até os membros da elite política temiam a perseguição do ditador soviético.
Muitos mantinham malas prontas para a prisão e pistolas sob o travesseiro para cometer suicídio a qualquer momento.
Mahatma Gandhi
Mahatma Gandhi (1869-1948)
Biografia: Mahatma Gandhi e Sua Luta com a Índia, do americano Joseph Lelyveld, de 2011
O que revelou: Com base em documentos e cartas inéditas do líder indiano, o autor comprova que Gandhi não foi sempre um pacifista anticolonialista.
Na verdade, ele participou diretamente de três esforços de guerra. Em um deles, em 1918, liderou uma expedição pela Índia para recrutar soldados para lutar pelos ingleses na I Guerra Mundial. Ele próprio se apresentou como voluntário.
O livro foi proibido no estado indiano onde Gandhi nasceu, Gujarat.
Mao Tsé-Tung
Mao Tsé-Tung (1893-1976)
Biografia: A Vida Privada do Camarada Mao, do chinês Li Zhisui, de 1994
O que revelou: O livro escrito pelo médico pessoal do líder comunista expôs os encontros sexuais de Mao com menores de idade, uma delas uma menina de apenas 14 anos.
Li afirma também que Mao era estéril e que o tratou diversas vezes de doenças venéreas, sem jamais lhe contar o diagnóstico, por medo.
A pedofilia de Mao é um fato relevante para compreender o caráter de um dos ditadores que menos escrúpulos tiveram em deixar morrer milhões de cidadãos, de fome ou assassinados.
Charles Darwin
Charles Darwin (1809-1882)
Biografia: Darwin, dos ingleses James Moore e Adrian Desmond, de 1991
O que revelou: Charles Darwin teria demorado duas décadas para publicar sua obra mais conhecida, A Origem das Espécies, para não ferir as crenças religiosas de sua mulher.
Ele só resolveu divulgar sua teoria revolucionária da seleção natural depois que outro cientista, Alfred Russel Wallace, lhe enviou em 1858 sua própria pesquisa que tangenciava o assunto.
O livro também trata da morte de sua filha Annie, aos 10 anos, de saúde frágil, e de como ele buscou na ciência a explicação para essa tragédia familiar.
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