por Natalio Cosoy
Gardel morreu em 24 de junho de 1935, há exatos 80 anos, em um acidente aéreo, e foi enterrado no cemitério de São Pedro, em Medellín, na Colômbia, onde fazia turnê. Mas seus restos mortais percorreram uma longa jornada, de mais de 12 mil km, da exumação na Colômbia ao enterro em Buenos Aires - onde fez sua carreira -, passando por Nova York e Rio de Janeiro.
Jornais da época ajudam a reconstruir essa jornada.
"O cadáver será embalado (...) e despachado (ao porto de) Buenaventura", disse o periódico colombiano El Tiempo de 19 de dezembro de 1935.
"Uma profunda emoção dominava os espectadores, que em silêncio seguiam os trabalhos (de exumação)", descreveu o jornal El Colombiano.
O corpo foi, então, levado a uma estação ferroviária, de onde partiria rumo à Argentina.
"A travessia durará um mês", escreveu o jornal El Heraldo de Antioquia.
Foram, no final, quase dois meses.
O historiador do tango Luciano Londoño López diz que a viagem demorou tanto por um motivo político: desviar a atenção do público argentino de um acordo - bastante questionado - entre Estados Unidos e Argentina sobre o comércio de carnes.
O corpo de Gardel saiu de Medellín e passou pelas cidades de Amagá e La Pintada, mas ali foi colocado em um automóvel até Valparaíso, também na Colômbia, explica o acadêmico.
Ali começaria a parte mais insólita da jornada.
Mula e cavalo
Sem estradas asfaltadas, a carga de "20 baús, três caixas com chapéus e o caixão de Gardel" foi transportada em lombo de mula e a cavalo, para atravessar essa montanhosa região da Colômbia, explica Jaime Rico Salazar, pesquisador da vida de Gardel.
Esta cópia da partida do corpo de Gardel está no Patio del Tango,
bar dedicado à música em Medellín
Após atravessar o morro de Caramanta, viajou a Marmato e Supía. Ali, Luis Gómez, encarregado pela empresa de transportes de acompanhar o traslado do corpo, deu seu depoimento ao El Colombiano em 21 de dezembro de 1935.
"As autoridades civis e a sociedade desta simpática cidade me pediram uma escala em Supía, para homenagear os restos do tanguista Carlos Gardel, que estou levando até Buenos Aires", explicou. "Os moradores da cidade desfilaram em grandes grupos ante os restos do 'rei do tango'."
Dali, o cadáver foi levado em automóvel até Pereira e colocado novamente em um trem, até Buenaventura.
"O trem de Antioquia, como homenagem ao cantor, não cobrou o valor do transporte", conta Londoño López.
A etapa seguinte, em 29 de dezembro, foi de barco a vapor. Houve uma escala no Panamá, onde o corpo mudou de embarcação, cruzou o canal e foi parar em Nova York, em 7 de janeiro de 1936.
A esta altura, já haviam se passado 20 dias desde a exumação em Medellín.
Nos EUA, o corpo foi velado por mais de uma semana em uma funerária e embarcado em outro navio, agora rumo a Buenos Aires.
Chegou à capital argentina em 5 de fevereiro em 1936, após escalas no Rio de Janeiro e em Montevidéu.
Uma nota do New York Times naquele dia descreveu na chegada: "Estações de rádio levavam sua voz a cada povoado e pelas solitárias pampas tornadas famosas em seus tangos ao redor do mundo."
Em Buenos Aires
Segundo o jornal americano, 20 mil pessoas esperavam a chegada do corpo no porto de Buenos Aires. Relatos mostram a comoção popular nos lugares onde passou o corpo do cantor Segundo o diário argentino El Litoral, porém, eram 40 mil, mulheres em sua maioria.
"Nas ruas (...) estava a carroça fúnebre, simples, levada por seis cavalos, seguida por outra com oferendas florais", disse o jornal.
"A operação ocorreu lentamente, em meio a um silêncio impressionante e soluços de muitas mulheres que o presenciaram."
A procissão foi até o Luna Park, estádio coberto localizado perto do porto, onde o corpo foi velado durante a noite. A multidão "começou a entoar as canções mais famosas de Gardel, em coro".
Gardel foi enterrado no cemitério de La Chacarita, no Panteão dos Artistas.
Mas, em dezembro de 1936, as autoridades resolveram aumentar o espaço do túmulo, e o corpo de Gardel voltou a ser exumado. Diante de milhares de pessoas, os restos mortais do cantor foram depositados no mausoléu que tem sua estátua, em 7 de novembro de 1937.
Ficção
Pouco mais se sabe sobre o trajeto do corpo, mas essa jornada é cercada de histórias.
No Patio del Tango, mítico local de Medellín, conta-se o caso de um senhor idoso que dizia ter visto o corpo de Gardel passar por seu povoado, no lombo de uma mula. O animal teria tropeçado e deixado o caixão cair no fundo da casa do idoso.
"É o lado bonito da tragédia - as lendas. O povo se apoderou do cadáver de Gardel", disse à BBC Mundo o cineasta Carlos Palau, que nesta quarta-feira lança um filme justamente sobre a trajetória dos restos mortais do cantor. Chama-se A Caravana de Gardel, mesmo nome do livro de Fernando Cruz Kronfly, em que foi baseado. O livro e o filme tentam compensar com ficção os vácuos dessa travessia. E não só eles usaram a criatividade para incrementar a história.
Palau conta que, ao visitar uma cidade colombiana, viu uma placa, ao lado da igreja, que dizia que Gardel havia sido velado ali. "Depois descobri", diz o cineasta, "que a placa era muito mais recente, colocada por um prefeito que fez a população acreditar que (ali havia ocorrido) um suposto velório."
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